terça-feira, 26 de novembro de 2013

Terra de Ninguém, por Carlos Antunes


Título original: Terra de Ninguém
Realização: Salomé Lamas
Argumento: Salomé Lamas

No final da sessão dos premiados do DocLisboa, as pessoas estavam relutantes em bater palmas ao filme de Salomé Lamas.
O motivo era uma necessária interiorização da personagem que acabara de se revelar perante o público e que fez pesar sobre o seu destino - e a nossa consciência do seu destino - o que foi o seu passado de mercenário.
Uma personagem que domina sobre qualquer formalismo documental e que se impõe como o núcleo do filme mesmo se o retorque da realizadora não deixe de ser precioso para arrancar a cada novo momento o discurso de Paulo de Figueiredo.
Mesmo que ele diga que quer contar a sua história, há uma relutância permanente em Paulo, que exige a Salomé ir buscar até as mais pequenas revelações ou, até, ir sempre buscar as mais pequenas revelações que podem chegar a alongar-se.
O reconhecimento de que Paulo é o essencial do filme está expresso no próprio resultado final, dividido em capítulos numerados (dentro de blocos temáticos) que evitam que tenham de se ouvir as perguntas que deram origem a cada nova revelação.
Não se trata somente do apagamento das perguntas, excelentes, vulgares ou falhadas - assim se adivinham - contra o que vem em resposta, mas também de criar uma espécie de lista de excertos auto-suficientes; o que acaba por sugerir a possibilidade de um trabalho de reconstrução futura em que um outro filme, de investigação da História política, pode ser criado tendo como ponto de partida algumas revelações de Paulo. Mas essa investigação é uma hipótese que este filme suscita, que é parte da riqueza de Paulo sem vir a sobrepôr-se a ele.
Se é sempre a ele que retorna a análise é porque é também a ele que o filme chega até uma certa medida de isolamento.
No início vemos a busca por uma composição de cenário que o inclua mas que acaba por se resumir a um pano negro e uma cadeira.
Das poucas vezes que a câmara se desvia daí é para o seguir quando se emociona e foge para a varanda para fumar ou para o retratar no seu próprio espaço.
O isolamento de Paulo no seio do filme leva reforça o extraordinário da sua figura. Ele revela-se para que cada um julgue a verdade que ele conhece.
Mas também virá a revoltar-se contra o filme porque tudo o que ele contém acabará por perder o valor visto que a realizadora não consegue encontrar os documentos que comprovam a história.
Nos esparsos apontamentos do diário de produção, lidos pela própria realizadora, ela acaba por revelar a inevitável dúvida sobre quem é de facto Paulo, que se diz neto de um dos fundadores do Casino Estoril e prisioneiro em França.
Haverá sempre argumentos em favor de que esta é a verdade - tantos factos tão próximos do que a realizadora conseguiu verificar - e de que esta é uma mentira - tantas possibilidades para vir acabar daquela forma.
O que não há é uma oposição moral às declarações de Paulo, apenas uma revelação de um homem que a realizadora considerou extraordinário mas que já não pode ver as reacções do público (se a morte de Paulo desarmou algumas das intenções da realizadora é uma pergunta que fica por responder).
Até porque este é um homem com uma moral própria, que não se defende do que fez mas relata um código que sempre empregou na sua matança.
A sua vida é aquela que ele resume depois de dizer que ele é tão mau como os homens que matou (que seriam todos merecedores desse destino), mas que para homens como ele há coragem para atirar em todos menos em si mesmo.


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