A presença de Rebecca Zlotowski em Lisboa a propósito da projecção do seu filme Grand Central na 14ª Festa do Cinema Francês permitiu-me estar à conversa com ela a propósito tanto desse filme como do seu primeiro filme, Belle Épine, que tinha a sorte de poder ver em DVD há alguns anos atrás.
No entanto, e apesar de uma hora de conversa, a entrevista ficou em suspenso com algumas perguntas adiadas para uma resposta escrita via email.
Respostas essas que demoraram a chegar pois ao regressar a Paris a sua agenda estava sobrecarregada.
Com esse natural atraso, decidiu-se recuperar a entrevista aquando do lançamento em DVD do filme que foi, na minha opinião, um dos melhores a estrear em Portugal em 2013.
Para grande orgulho de quem, nesta ocasião, vestiu a pele de entrevistador, a realizadora deixou elogios muito sinceros acerca da entrevista que classificou como uma excelente e desafiante conversa a propósito da sua obra.
Com isso em mente espero que, apesar da extensão do texto que se segue, possam tirar o tempo para ler uma excelente conversa onde Rebecca Zlotowski revelou enorme disponibilidade, ao ponto de chegar a fazer algumas confissões pessoais acerca do que passa de si para os seus filmes.
Carlos Antunes
A central nuclear e a família de trabalhadores são personagens equiparadas aos dois amantes. Só conseguiu chegar a esse patamar com toda a pesquisa que fez para o filme?
Tens razão, é um diálogo constante – uma analogia – entre o sentimento amoroso e a central nuclear e o seu mundo do trabalho.
E foi necessário documentar-me muito, muito, muito, porque não conhecia nada do mundo deste tipo de trabalho.
Imaginava que poderiam morrer, tudo começou com essa intuição, mas uma intuição podes tê-la sem conheceres nada.
Para ser sincera, existe uma ligação muito forte entre a ameaça invisível no interior de uma instalação nuclear ou com a proximidade à radioactividade e o cair de amores por alguém, que é igualmente uma ameaça invisível.
Clicar aqui para ler a restante entrevista.
Clicar aqui para ler a restante entrevista.
Nesse caso a Dose é a metáfora do próprio Amor ou do inimigo social ao idílico romântico?
Acho que o Amor é um inimigo social. Acho que a catástrofe é o Amor.
Quando tens uma vida que funciona bem, o momento em que ficas apaixonada de maneira tão intensa como as minhas personagens, isso é uma catástrofe porque desregula a sociedade em que se inserem.
A dose é a metáfora deste perigo invisível. Mas depois funciona também como uma outra metáfora porque é um mal que, como dizemos em França, se instala debaixo da pele.
Quer dizer que é desagradável e que permanece durante muito tempo. Quanto tempo ficará isso? Terás de o transpirar durante dois anos, cinco anos, dez anos..... Não esperas que seja rápido.
Há sobre isso uma frase de Françoise Sagan, escritora que adoro, e que é conhecida por escrever muitíssimo bem sobre o Amor.
Uma jornalista perguntou-lhe “Você que conhece tão bem o Amor, o que é?” e ela respondeu “Não lhe posso dizer o que é, mas posso dizer-lhe uma coisa. Só faz bem quando termina.”.
E no filme há um pouco dessa ideia.
A questão da dose, da radioactividade, era algo que fazia muito sentido no filme porque permitia reunir algo que adoro no Cinema que é espectacular, inquietante, ameaçador, perigoso... e invisível, ainda que isso seja um perigo para a mise-en-scène; com algo que é muito lexical, poético, barroco, já muito trabalhado é verdade, mas que nos diz que o amor nos faz mal ao mesmo tempo que nos exalta.
É uma possibilidade de ficção muito prometedora.
A sua escrita está muito mais madura neste segundo filme. A realidade com que trabalhou tem algo que ver com isso?
Nos dois filmes, no projecto de argumento e como venho da escrita e não da imagem, sinto que se estabelecem sobre ideias literárias.
Em Belle Épine é a imagem literária da suspensão, do choque. Ou seja, há um acontecimento e passa-se algum tempo até que ele tenha o impacto.
Essa é a ideia literária e depois o filme tem de encontrar um mundo de perigo, o dos motards, que é atraente e que permite falar da morte e da solidão.
Em Grand Central é verdade que a matéria documental tão rica que é a indústria do nuclear – que nem precisa de representação – é o motivo da acção e a causa das peripécias do filme e da escrita que faz com que possamos ter toda aquela primeira parte de descoberta.
Como se entra neste mundo? Como se faz para se integrar? Como se é aceite pela equipa? Qual é o acidente que vai colocar em causa a integridade da equipa?
Todos estes são elementos que exigem pesquisa e que representam algo de mais tradicional na escrita porque me permitiu passar por diversas etapas e estabelecer o primeiro momento como realizadora.
Há um conjunto de homens que são chamados a enfrentar o perigo, que vivem num ambiente social muito difícil. É preciso compreender um pouco o seu mundo social, a siderurgia, e depois eles “vão para a guerra”.
Por aí há algo de mais clássico na escrita de Grand Central, algo de mais narrativo. Grand Central funciona igualmente com uma analogia um pouco poética.
Há uma ideia em Grand Central - como Pasolini dizia, o cinema de prosa e o cinema de poesia – que a comanda para o cinema de poesia.
A analogia da toxicidade invisível entre o sentimento amoroso e o trabalho daqueles homens domina o filme. Diria que eles são regidos pela analogia e não pelos eventos do filme.
Era argumentista antes de se sentar na cadeira de realiadora. Sente-se mais argumentista do que realizadora?
Verdadeiramente sinto-me como ambas.
No momento em que realizo sinto-me realizadora e quando escrevo argumentos para outros sinto-me argumentista.
Em França há a tradição de autor-realizador. Todos os realizadores acabam por intervir na escrita do argumento, é assim por todo o mundo, mas é verdade que em França essa tradição do realizador escrever o seu argumento está muito vincada.
Quase que não sabemos fazer de outra forma. Não sou nada de especial em França, à minha volta todos os realizadores escrevem os seus argumentos.
Mas a razão porque tenho prazer de ser argumentista para outros é porque no momento em que escrevo já tenho todo o filme estabelecido na cabeça. A luz, o som, a música, os cenários...
Depois, quando és tu a realizadora há todo esse trabalho cão de procurar os locais, conseguir o dinheiro, com todo o tempo adicional que isso exige. Mas também todo o prazer adicional que isso traz de dar vida ao filme, com todas as questões adicionais que não se colocam na escrita do argumento.
Para mim são actividades complementares, é necessário que vivam em conjunto.
E vejo o Cinema como um trabalho de conjunto, por isso até gostava de ser a directora artística de um outro filme.
Posso imaginar uma série de colaborações com outras pessoas sem ter a sensação de frustração ou de fazer menos.
Quando se realiza tem-se a responsabilidade quase penal, legal, de todo o projecto. O que torna tudo mais longo, angustiante e exposto. Expomo-nos mais. Sofremos mais. Há mais da nossa vida no filme do que no caso do argumentista ou director artístico.
O Cinema não é uma pirâmide, todas as actividades podem ser distribuídas. Claro que ser a realizadora é óptimo, mas há prazer e desprazer em todos os cargos.
Não tenho apenas duas competências. Tudo bem que não possa fazer o guarda-roupa – mas até era uma tarefa que me agradaria muito – mas escrever, ensaiar e realizar são tarefas que coloco ao serviço do filme.
Quando se deu o acidente de Fukushima já tinha o argumento escrito. Esse acontecimento acabou por vir a alterar algo no argumento, apesar disso?
Mudou porque mudou algo na vida de todos. Este evento, esta tragédia... Penso que todas as pessoas que viram isso em tempo real o recordarão como um acontecimento.
O World Trade Center é um acontecimento. Um Mundial é um acontecimento. Em dimensões opostas de tragédia e prazer, claro, mas sendo eventos colectivos que afectam todo o Mundo.
Por isso modificou algo na minha vida e na vida dos que estão à minha volta. Causou um medo imenso, um choque imenso.
Depois, como o argumento não falava do Nuclear pela sua dimensão de tragédia, porque aquilo que nos apaixonava era a existência da Dose e como isso afectava a solidariedade, a bravura e o heroísmo daqueles homens e como eram capazes de se expor a tal perigo.
Após de Fukushima, isso tornou-se uma causa colectiva. Antes quase não se falava no tema e depois tornou-se numa causa geral a vida destes homens que se colocavam em risco pelo nosso bem-estar.
Vocês em Portugal não usam o Nuclear, por isso são um pouco estrangeiros a este debate, mas em França toda a nossa energia vem do Nuclear.
Há homens à nossa volta que trabalham para a inústria da energia Nuclear e nós não nos damos conta.
Não alterou a linha narrativa do filme, de todo, mas alterou as hipóteses deste filme ser feito porque quando chegávamos aos financiadores eles achavam o tema geral muito interessante porque toda a gente falava nele.
Antes disso diziam que o tema era muito duro, que não interessava a ninguém, não é sexy.
Alterou-se sobretudo isso.
Perdão, mais uma coisa, alterou um pouco também nos personagens porque a ideia era transmitir algo de mítico, de heróico destes homens que enfrentavam o perigo.
Mas depois de Fukushima, ao falar com eles, tornou-se evidente que não são uns kamikaze, têm consciência de que estão expostos ao perigo e não têm desejo de morrer. Todos neste trabalho têm família e não querem morrer.
Fukushima alterou um certo sentido de inconsciência nos personagens que teriam um pouco de loucura em si mesmos. Quis mostrar que os personagens não eram idiotas.
Se eles vão de encontro ao perigo é porque vivem em condições miseráveis. Não têm qualificações e preferem fazer aquele trabalho em que são um pouco melhor pagos do que trabalhos que são uma verdadeira nulidade.
Conseguiu reunir um excelente elenco com Olivier Gourmet e Denis Ménochet ao lado de Léa Seydoux e Tahar Rahim. Como é que isto se tornou possível para um realizador ao seu segundo filme?
Em França também perguntam como foi que consegui tais actores. Podia ser que eles tenham querido vir trabalhar comigo! (risos)
Obviamente, foi uma proeza, pois fiz um primeiro filme muito pequeno, que não foi um sucesso.
30 mil espectadores.
Isso não é nada. Quase um falhanço comercial.
Isso são 100 vezes mais espectadores do que um filme português sem público.
Bem, considerando o número de ecrãs seria como se o filme tivesse tido 300 espectadores.
De qualquer maneira em França há essa possibilidade preciosa de fazer filmes que não são muito comerciais e, apesar de tudo, fazer um segundo.
É misterioso, disfuncional, mas um disfuncional óptimo para os realizadores.
Que alguém como eu possa fazer um primeiro filme que falha comercialmente e fazer um segundo com bastante facilidade, sem demasiada dificuldade de financiamento.
Tem também que ver com o facto do teu filme ser considerado pela crítica e por um grande festival como Cannes. Se lhe dão atenção podes fazer um segundo filme, podes até fazer cinquenta!
Há muitos realizadores em França que nunca quebraram essa barreira comercial mas que fazem os seus filmes um após o outro. Com alguma dificuldade mas conseguem-no.
É um sistema precioso, pelo qual é preciso lutar porque está ameaçado neste momento.
Claro que, com isto, quando fui falar com os actores não estava numa posição de força. São actores amados pelo público, com filmes de sucesso e que desejam trabalhar com realizadores já estabelecidos, o que não era o meu caso só tendo feito um filme.
Não lhes podia prometer um grande cachet, pois era o meu segundo filme, nem lhes podia garantir que o filme ia ser muito popular. Por isso foi preciso coragem dos actores.
Por outro lado, quando tens uma ideia muito precisa daquilo que queres trabalhar com os actores, isso torna-se irresistível para eles.
Também não sou idiota, não fui à procura de actores que me diriam não. Fui à procura de actores que amo pelas razões pelas quais eles eram capazes de me amar a mim.
É um amor não masoquista, amas alguém que também te ama um pouco, senão serás sempre infeliz.
Depois foi um pouco o desejo da Léa com um pouco de poker.
O coração do filme foi Tahar Rahim, foi o primeiro actor a quem me dirigi e quando lá cheguei sabia que não ia numa posição de força porque ele tinha ganho os Césares e o Goya. Mas tinha a certeza de o querer a ele.
Para o actor principal não pretendia fazer um casting extremamente longo, queria alguém que se disponibilizasse comigo.
Quando me juntei a Léa Seixdoux para o Belle Épine só falei com uma pessoa. Disse-lhe que a queria a ela e que moldaria o filme em função dela.
Ainda que não escreva um papel com um actor em mente, acabei por fazer isso com o Tahar Rahim. Agarrei-o pelos colarinhos e disse-lhe “Interessa-te? Dizes-me sim ou não, já.”.
Ele teve muito coragem e disse sim, porque é preciso muita coragem para dizer que sim sem argumento ainda.
Depois acho que muitos actores se sentiram intrigados e interessados em trabalhar ao lado dele. Criou-se algo de sedutor e os actores iam aceitando pensando em rodar com aquele actor.
Até porque não fui atrás deles por razões comerciais mas porque via neles a possibilidade de acrescentar alguma coisa aos respectivos papéis.
Por isso também não quis ir atrás de actores não profissionais mas que conhecessem aquele universo, quis ir atrás de actores que conseguissem trazer para os papéis alguma da memória do que já tinham feito em outros papéis.
Sobretudo no caso de Olivier Gourmet, porque tinha em mente precisamente os papéis que ele fez para os irmãos Dardenne em que ele encarna o homem da classe operária e num filme que havia visto recentemente em que ele interpretava o líder do gabinete de um político [Nota do entrevistador: L'exercice de l'État, passado na Festa do Cinema Francês]. Nessa conjugação de operário e de líder tinha ali o actor ideal para comandar aquela equipa de homens.
É esse tipo de lógica que me leva a escolher os actores.
Falou em Western a propósito do início do filme. E, obviamente, há o drama social à medida que o filme decorre. Mas, em última análise, definiria o filme como uma história de amor?
É a tua função definir o filme. (risos)
Nunca pensei o Cinema pelo género. Isso terá sido um jornalista que o sugeriu e eu disse-lhe que sim, que havia ali uma memória cinéfila... do Western, de um certo cinema americano de grupo, de certos filmes franceses dos anos 1930/40, de um certo neo-realismo que são filmes que muito me marcaram...
Mas não é essa a origem do filme. E nem lhe tento definir um género, não é essa a minha forma de escrever, nem de imaginar o filme.
Agora o que está no coração do filme é o sentimento amoroso, sim, mesmo mesmo no seu centro. Que depois se expande e se confronta com essa imponência do drama social e até do filme de acção, poderia dizer-se.
O filme é um pouco como um conto de fadas entre dois amantes e a central nuclear é a versão moderna da prisão na torre do castelo que paira sobre eles?
Sim! (risos)
Exactamente, é uma bela imagem.
Não tinha pensado nas torres como torres de um castelo mas houve um momento, numa cena que acabou cortada mas de que gostava muito, que era entre Gary e o seu pequeno recém-nascido – que desapareceu do filme porque não adicionava nada – e ele contava-lhe uma história para dormir, que era dos Doze Trabalhos de Hércules.
E nos Doze Trabalhos de Hércules há um episódio que é o das cavalariças de Augias que não eram limpas há 30 anos, um trabalho verdadeiramente impossível.
E sempre vi o filme um pouco assim, como se estivessem a fazer algo que se assemelha à Lenda. Até um pouco da história de Tristão e Isolda.
Quando pensas em personagens dramáticas que nos acompanham sempre, pensas nessas personagens e se o cinema as poder reinventar para os dias de hoje é fantástico.
Creio que o filme pode ser visto por inteiro como os Doze Trabalhos de Hércules, algo que tens de fazer para atestar a tua coragem e ser salvo.
Ainda sobre essa aproximação às lendas aproveito para falar também do seu primeiro filme.
Em Belle Épine há o atravessar de uma floresta e em Grand Central há o atravessar de um rio. Em ambos os casos as personagens estão a atravessar em direcção a uma espécie de paraíso emocional ilícito. São momentos pensados para se aproximar a tais aventuras lendária?
Se queres ser feérico, se queres ser mitológico, se queres ser lendário, sim.
Em todo o caso, são lugares abstractos. Tu vês a barca neste filme e é óbvio que tenho em mente as minhas memórias de estudante de literatura, o Latim, o Grego, a barca de Caronte que passa para o dos mortos.
Na nossa mitologia Judaico-Cristã é feita deste tipo de imagens que nos cultivam de passagem de um lugar de tristeza a um paraíso afectivo – como disseste, ilícito.
Nos ritos iniciáticos é necessário atravessar uma paisagem e essas podem ser como no caso de Dante uma floresta ou como na Bíblia ou na Mitologia Grega os círculos do inferno...
Ela atravessa uma floresta para chegar ao local dos motards mas eu procurava que ela fosse em direcção ao círculo branco da luz que vem das motas.
Eu procurava qualquer coisa de circular e isso vem da imagem cultural comum a todos. Que remete para a Mitologia, que remete para a Religião...
Não pretendo dizer que todas as referências lá estão, isso seria pretensioso!
Mas precisava de uma imagem partilhada por todos. Como os personagens vivem o seu amor profundo, era necessário um espaço de transição.
Gosto de ver as personagens dos meus filmes vencerem um espaço de passagem.
Porque há, igualmente, um sentido de ameaça do que está do lado de lá.
O cinema coloca sempre a questão do realismo e do artifício, de qualquer coisa muito concreta que a câmara possa registar.
Eu filmei a central nuclear, filmei um mundo de trabalho, filmei homens vestem e despem protecções. Isso não é decorativo, é o verdadeiro ambiente do filme. E, ao mesmo tempo, há algo de abstracto, muito estilizado, porque o cinema nos permite tocar algo que é do domínio dos sentimentos e das emoções... da irrealidade que é preciso mostrar.
Excita-me poder captar isso. Através de uma floresta pela noite, através de uma barca que desce o rio. É uma cena de pura narração poética. Percebes muito bem o que se passou!
Não é preciso dizer “eu estou apaixonado por ti, tenho desejo de ti, mas precisamos de nos esconder”. Basta colocar os dois num bote, durante a noite, usar a música e o ambiente, sugerir a ameaça das árvores que os engolem, talvez usar a a luz ao fundo sem que se veja totalmente e usar a câmara que passa de um ao outro e sugere a ligação entre ambos.
Há outras ressonâncias entre os dois filmes. A mais óbvia será o final, com sirenes a tocarem. São avisos para a vida que as personagens terão de enfrentar após o fim do filme?
Sim!
Tu que viste os dois filmes poderias ter julgado que eu não tenho imaginação para terminá-los de maneira diferente, mas as sirenes são uma das minhas obsessões.
No primeiro caso é uma sirene de libertação, uma sirene que alivia a personagem e lhe anuncia a libertação. No segundo caso é uma sirene de ameaça.
Em ambos os casos comentam o estado emocional das personagens logo após o filme. É como o epílogo, as reticências.
No primeiro caso anuncia que ela ficará melhor do que até aí. No segundo caso anuncia os problemas que acabam de chegar para o casal.
As sirenes são temas narrativos muitos fortes e que dizem coisas diferentes a cada vez que surgem.
A presença de Léa Seydoux como protagonista de ambos os filmes sugere uma continuidade de evolução de uma única personagem feminina. Da rapariga com pouca noção de sexualidade até à jovem mulher satisfazendo os seus desejos, mas sempre uma mulher à procura de algo físico com que substituir os seus sentimentos de solidão. Concordaria com esta visão?
Diria que não. Gosto muito da capacidade dos actores de encarnarem algo de muito diferente.
É algo banal dizer que trabalhar com o mesmo actor é uma forma de documentar a sua evolução.
Tem-se a impressão de captar algo que tem que ver com a sua idade e o seu lugar na indústria. Mas a Léa, após três anos, tornou-se uma actriz a quem é dada muito mais atenção, que trabalhou com muitos realizadores.
Entre o momento em que trabalhei com ela no Belle Épine e agora ela traz toda essa relação com outros papéis e pode ser que o filme capte alguma coisa dos papéis em que ela foi traçada mais como uma personagem “venenosa”, mas nada mais do que isso.
Mas são duas personagens que buscam algo para substituir a solidão...
Julgo que todas as minhas personagens são assim.
Então não há uma continuação de descoberta de sexualidade.
Isso é apenas porque em ambos os casos a sexualidade não é um Graal, não é um tesouro.
Em Belle Épine ela faz amor pela segunda ou terceira vez e o fazer amor não é um fim é um meio para a relação afectiva. E em Grand Central ela faz amor com grande pressa e intensidade para corresponder à paixão, não é um tópico do filme.
A sexualidade não é um tema dos meus filmes... para já!
Ainda assim, o tema está lá.
Na primeira cena de Belle Épine Léa Seydoux é despida mecanicamente. Depois acontece o mesmo em Grand Central quando os protagonistas vão iniciar o trabalho. Já quando os amantes estão nús sobre a relva, a cena encara de novo esses corpos com uma sexualidade latente, o que exponencia o sentimento de que o verdadeiro erotismo está no tocar de peles.
É uma análise muito justa do filme.
O filme funciona numa série de contrastes muito forte. Até na minha maneira de filmar.
No interior da Central filmei em digital e no exterior filme usei 35mm. Isto não é habitual, em geral deves escolher um dos formatos.
Mas disse ao meu director de fotografia que não podia escolher, porque o 35mm é o que há de mais belo para filmar a luz sobre a pele. E o digital, quando não tens a luz natural, é igualmente belo.
E assim filmei nos dois formatos para reforçar o efeito de contraste entre o mundo hermeticamente fechado, difícil, vestido, protegido da central nuclear e o exterior onde se revela a paixão, a pulsão, o sentimento e onde se despem, onde a pele não precisa de estar coberta.
Só que em ambos os casos a pele está em risco. Na central não se podem despir porque seria dramático por culpa da radioactividade, mas no exterior é igualmente perigoso porque se se despem tombam pelo amor. Há qualquer coisa nos dois casos que faz com que dialoguem dois tipos de protecção e dois tipos de perigos eminentes.
Voltando ao que conjuga ambos os filmes, gostaria de falar da família.
Prudence procura uma família de todas as maneiras possíveis. Em Grand Central a família é o conjunto de todos os trabalhadores. Mas acaba por haver sempre filhos que terão de viver sem um dos progenitores - ou, pelo menos, sem um dos pais biológicos. Mesmo se depois há outros tipo de soluções encontradas para eles!
Esta é, para si, uma das grandes ferramentas dramáticas ou é uma mera coincidência?
Até este momento não tinha reparado nisso no Grand Central. Não será uma coindicência, sem dúvida... É curioso.
A minha mãe morreu quando eu era muito jovem e pode ser que isso regresse ao meu subconsciente.
Mas não tinha reparado que no Grand Central há um pai em falta, mas é verdade que fica anunciado que o pai vai morrer em breve.
É um tropismo, uma obsessão, qualquer coisa que nos é muito próxima e acaba por resvalar para o filme, um tema recorrente.
Será algo subconsciente que eu faça filmes com órfãos, que não seria evidente.
Para finalizar, ainda naquilo que é comum a ambos os seus filmes e que, suspeito, permite ler algo sobre a visão da sua autora.
Prudence queima a pele quando vai ter com o seu potencial interesse romântico e uma mota raspa no alcatrão provocando faíscas. Gary "queima-se" com o número crescente de Doses a que é exposto para poder estar com quem ama. É a sua visão definitiva sobre o Amor?
Queima, claro! (risos)
Sabes, o Gary não se chama assim por causa do Gary Cooper, [Nota do entrevistador: ideia sugerida por diversos críticos] mas porque Gary significa “queimar” em Russo.
Por isso sim, é a minha ideia sobre o Amor. Queima.
Não é a tua? (risos)
Não, julgo que não.
Claro que também há momentos de doçura, mas o que quero dizer é que não tenho uma concepção idealizada do sentimento amoroso, tenho uma concepção mais barroca, algo sombrio, venenoso, inquietante.
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