Por Miguel Stichini.
O realizador norte-americano Todd Haynes é indiscutivelmente o Douglas Sirk do cinema gay
contemporâneo da nossa geração. Ou pelo menos o Rainer Werner Fassbinder. Um artista
talentoso e sensível responsável por obras-primas como Far from Heaven (2002), Safe (1995) e Velvet Goldmine (1998),
Todd Haynes encontra-se no topo da lista de autores do cinema queer, ao lado de Gregg Araki e
John Cameron Mitchell. Recorrendo inúmeras vezes ao melodrama technicolor, como pano de fundo
para os seus filmes, o cineasta deixa-se inspirar em All That Heaven Allows (1955) e Ali: Fear Eats the Soul (1974). A
narrativa pouco convencional das suas obras foca menos sobre os seus personagens sexualmente
conflituosos, mas mais nas construções sociais que geram esses mesmos conflitos.
Muito mais astutas que a visão heterossexual sobre uma história homossexual de Ang Lee em
Brokeback Mountain (2005) e menos chocantes que Mysterious Skin (2004) de Gregg Araki, as obras de Todd
Haynes ocupam um espaço na história de Hollywood de quem apresenta um conhecimento
profundo do melodrama clássico e uma grande atenção ao posicionamento da câmara, captação de
imagem e edição, muito mais que os seus contemporâneos gostam de admitir.
O casamento de grandes mentes, claramente, exige um certo nível de impedimento. Qual a
razão pela qual o cineasta volta a visitar o mesmo tempo e tom que visitara aquando de Far from
Heaven? Simplesmente porque o período garante não só armadilhas românticas de alta-qualidade,
como também um grau perfeito de frustração sem o qual um romance não se tornaria drama. Se
tivesse adaptado The Price of Salt de Patricia Highsmith aos dias de hoje, o efeito jamais seria o
mesmo. A destruição de um casamento heterossexual em nome de uma relação homossexual é hoje
saudada cinematicamente por uma honestidade emocional, enquanto a obra de Patricia Highsmith
mergulha por entre o crime, um silvo de desprezo social e ao perigo a ele subjacente.
A diferença entre as duas obras do realizador é que desta vez a iluminação incandescente, as
paletas de cor saturada, diálogos over-the-top e a banda sonora de Elmer Bernstein são postas de lado.
Este novo filme move-se para lá de uma simples homenagem ao género, capturando a sensação
repressiva de uma América em plenos anos 50, apresentando uma estética mais íntima. Os rostos
dos personagens são muitas vezes capturados através das janelas de um carro à chuva, cobertos por
uma desfocada paisagem urbana, por entre diálogos pontuados por longas pausas e a angústia surge
através de um desespero silencioso. Trata-se de um retrato definitivamente mais naturalista, mas
não deixa de ser cuidado, rigoroso e maduro.
O argumento poderia simplesmente ter sido sobre um relacionamento vítima de uma época
passada. Em vez disso, a dupla de argumentistas constrói um testamento à capacidade do amor em
prosperar. Trata-se de uma história bela em parte devido à manipulação irrestrita do relacionamento
lésbico das protagonistas e à precisão com que o mesmo é retratado. Existe uma certa rigidez
tipicamente associada a filmes de época, onde guarda-roupa e diálogos apropriados se colocam no
caminho das personagens. Tal não acontece no mais recente filme de Todd Haynes que recorre
àquele período temporal como molde para um drama humanista.
O trabalho de fotografia de Edward Lachman evoca a memória de dias passados, adoptando a
aparência inconfundível de um snapshot de cor em movimento tirado em 1952. A juntar-se a esta
magia imagética quase perfeita encontram-se os atributos técnicos de Carter Burwell, cuja banda
sonora se torna uma pontuação melancolicamente urgente; os guarda-roupas primorosamente
envolventes de Sandy Powell e o detalhe onírico da direcção de arte de Jesse Rosenthal. A beleza do
vintage que pontua o ecrã é rapidamente enfraquecida pela amarga e potencialmente sufocante
realidade subjacente à época.
Em momento algum se sente a intenção em se criar uma tragédia, mas ainda assim ao evitar
reconhecer as adversidades dos seus protagonistas, permite-lhes um raio de esperança no final das
suas lutas interpessoais. Por entre toda a tolice e ignorância que as protagonistas enfrentam
diariamente, no final do dia prevalece algo entre elas bem mais poderoso que coloca de lado os
intrometidos e intolerantes que ousam empunhar as suas opiniões.
Sempre que se fala de filmes americanos com grandes nomes no elenco cuja história gere
questões de género, a maioria das vezes a tendência dos críticos é sugerirem que os elencos e
realizadores conseguem transformar a história em algo acessível e normativo. Trata-se de uma
noção no mínimo insultuosa que involuntariamente sublinha uma agenda heteronormativa sobre
qualquer obra romântica que ouse não conter um casal hetero no seu centro.
Cate Blanchett e Rooney Mara são as protagonistas de um dos romances mais marcantes do
ano, e um dos casais mais magnéticos. A contenção de Carol e Therese exibida à medida que as
duas conversam e aos poucos se tornam íntimas é retratada de uma forma honesta. O mesmo
acontece aquando da consumação do seu relacionamento, que pungentemente rasca a narrativa. De
um ponto de vista exterior, Carol de Cate Blanchett é impressionante, impecavelmente vestida, com
o seu cabelo loiro ondulado enrolado apenas para a direita, exibindo um ar de confiança a cada a
passo, mas onde nem tudo é perfeito na sua vida privada. A actriz é resplandecente a casa segundo,
matreiramente hilariante num momento, desoladora no seguinte. O auge da sua crua e humanística
disponibilidade surge no confronto final com Harge, numa sala repleta de advogados enquanto
defende o direito de ser ao mesmo tempo mãe e alguém merecedor de afecto.
Para Therese a novidade da sua relação é ligeiramente perturbadora, mas não menos
emocionante. A sua auto-descoberta sexual que, em última análise, a leva a tomar algumas decisões
corajosas, é tratada sublimemente. Rooney Mara têm desenvolvido notoriamente quase todos os
seus grandes papéis de forma contida. Por vezes funciona muito bem para a personagem, por
vezes, inadvertidamente, dá-nos a sensação que a actriz tem falta de carisma. O estilo representativo
da actriz assenta que nem uma luva na sua tranquilamente modesta personagem, onde actriz e
personagem parecem ganhar confiança aos poucos simultaneamente.
Carol inteligentemente desenvolve um retrato de alguém que vive numa sociedade socialmente
repressiva e o que isso realmente significa. Tristeza e esperança entrelaçam-se por entre a força
gravitacional que atrai as duas protagonistas enquanto o universo de tudo faz para as separar.
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