Por Miguel Stichini.

O argumento adaptado de Lucinda Coxon, ao tentar desenvolver uma história que se enquadre
no primeiro grupo, torna-se obediente às várias provocações e desafios que o casal de protagonistas
enfrenta com a estrita linearidade da sua história. Diria mesmo que se torna rigidamente mais
documental que ficcional. A sua estrutura narrativa aborda a progressiva jornada de mudança de
Einar para Lili, mas sem nunca conseguir obter um ritmo orgânico que preencha os espaços em
branco de um possível e convincente arco interno.
Por uma questão de foco e impulso, Lucinda Coxon poderia ter eliminado um conjunto de
narrativas românticas paralelas que nunca chegam a lado algum. Existem momentos sucintos onde
palavras são trocadas entre uma mulher atormentada e a pessoa que outrora fora o seu marido. A
situação irretratável de alguém preso dentro do corpo errado surge com eximia exactidão. Depois,
esse efeito rapidamente desvanece com one-liners que ameaçam neutralizar o factor surpresa.
É difícil entender de forma adequada a frustração e admiração que o filme de Tom Hooper
tenta transmitir. Por um lado, a representação de um transgénero/transexual numa Europa na
segunda década do século passado é algo refrescante, ainda que contido. No decorrer da acção não
surgem inúmeros discursos de falso moralismo ou demasiadamente melodramáticos. Por outro
lado, trata-se de uma história contada através de uma perspectiva de alguém que se pôde dar ao
luxo de se submeter a uma intervenção de mudança de sexo e de estatuto social, sem grandes
barreiras impostas pela sociedade.
Para um filme que retrata a história de uma das primeiras pessoas a transitar de sexo fisicamente,
ela nunca nos transmite uma sensação de medo ou dificuldade face a algo que ainda hoje é
extremamente difícil de concretizar. Não deveria ser uma história sobre o sofrimento, por si só, mas
não deveria surgir como algo banal. As coisas nem sempre são cor-de-rosa para o protagonista, mas
certamente que existirão momentos penosos e trágicos durante a sua jornada e esses nunca nos são
apresentados.
Ainda assim, tecnicamente este é o trabalho do sobrestimado Tom Hooper que consegue
atingir mais notas certas. O realizador opta por colocar de lado os seus floreados visuais mais
irritantes de forma a criar um sentimento mais genuíno, mais imponente. O cineasta decide remeter
sua tendência de recorrer a uma gama cinzenta e a espaços de uma negatividade inútil, que nos
remetem para uma teatralidade amadora, a um canto deixando que aquelas pessoas ganhem vida e a
história surja o mais natural possível.
Enquanto estudo de empatia o filme apresenta-se imparcial e inteligentemente evita tomar o
partido de um dos protagonistas. Valentemente conta-nos uma história que precisava ser contada,
ainda que o faça mais sobre a perspectiva de Gerda. A transformação de Einar em Lili não contém
material suficiente para que se torne em algo profundo e que responda a todas as nossas perguntas.
Contudo, é um testamento à versatilidade de Eddie Redmayne que consegue criar mais camadas a
uma personagem que rapidamente se poderia ter tornado oca. O actor aceita novamente uma
personagem que o desafia fisicamente. Ele consegue adoravelmente jogar com os seus traços
andróginos e maneirismos femininos, criando duas personagens discretas, recatas e apaixonadas.
Numa das cenas mais marcantes do filme, vemos Einar a visitar um peep-show, enquanto tenta
duplicar os gestos da performer atrás do espelho.
O título do filme poderia estar no plural, pois o trabalho de Alicia Vikander não deve ser
desvalorizado de forma alguma. A actriz consegue de forma exímia e repleta de nuances retratar
uma mulher que se balanceia entre um sentimento de culpa auto-imposta, decepção e lealdade para
com os desejos do marido. Argutamente o argumento não a transforma em algo unidimensional; ela
suporta o marido de forma incondicional, ao mesmo tempo que o vê fugir-lhe por entre os dedos e
com o decorrer da acção apenas a sua solidão persiste.
Dos actores secundários destacam-se três: Matthias Schoenaerts é sedutoramente viril e
apresenta uma mentalidade bastante aberta para a época enquanto Hans Axgil, amigo de infância de
Einar e futuro amante de Gerda; Ben Whishaw carrega uma sensibilidade intrigante como Henrik, o
primeiro amor de Lili; e Amber Heard adiciona um toque de energia e frescura na pele de Ulla,
uma bailarina de espírito livre e amiga próxima do casal de protagonistas.
The Danish Girl, tal como um grande artista, tenta ver o mundo a partir de inúmeras perspectivas.
Enquanto tenta compreender a sua própria identidade, desenvolve em nós uma sensação de
empatia para com a rebeldia e as normativas, os adaptados e os que não se deixam rotular, entre a
ténue linha que separa os sexos socialmente estabelecidos.
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