terça-feira, 23 de setembro de 2014

Lacrau, por Carlos Antunes



Título original: Lacrau
Realizador: João Vladimiro
Argumento: João Vladimiro

Diz o realizador que se propôs a equacionar a nossa posição num mundo que colocou a evolução tecnológica em primeiro lugar.
Acidentalmente o realizador usou a palavra certa, pois uma equação é uma igualdade entre duas combinações de elementos aparentemente distintas.
Aquilo que o realizador faz com a imagem e o som ao longo de todo o filme é, precisamente, essa equalização, a transformação dos vários momentos do filme num mesmo isolamento, anti-pictórico e anti-audiófilo.
Isolamento que persegue como se isso fosse uma forma de linguagem capaz de se retransmitir universalmente naquele vazio deixado à interpretação do público.
Por recusar a evidência das imagens e dos sons, tanto por não lhes dar um suporte (material) constante ou por não "legendar" a sua origem, o realizador afirma que o importante não são esses elementos mas o seu efeito de transmissão, precisamente em oposição (e não em equação) uns com os outros.
As imagens nascem da dimensão oposta à de onde nasce o som.
As imagens transmitem silêncio - paz, ensimesmamento, abstracção? Os sons transmitem preenchimento - caos, irrefreabilidade, corporeidade?
Mas é inevitável reconhecer às imagens alguns elementos inteligíveis que o som nunca proporciona. Assim, não se consegue aceitar a existência deles como elementos de conjunto - até porque o som, muitas vezes, martiriza as imagens - que transmitam uma ideia (bipolarizada, ainda para mais) livre de contextos externos.
Os elementos criam uma dissonância que só pode ser resolvida conhecendo o código de linguagem com que o realizador partiu para a sua captura, escolha e justaposição.
O exemplo mais óbvio são os períodos de silêncio cujo momento de existência não se decifra, sobretudo porque o som nunca existe contra um ecrã vazio.
Perante estas decisões, o autor chama a Lacrau ensaio, evocando o significado que nessa palavra lhe é mais útil. Não se trata de uma experiência pessoal tentando que os elementos - imagem e som - sejam capazes de se conectar num projecto que interpela as pessoas a quem se dirige.
Trata-se de um esboço de uma estrutura maior que, por ter essa denominação, se pode permitir um alheamento em relação ao "outro" e uma existência que só se completa na mente do autor - para onde nunca são dadas pistas para que lá possamos chegar.
Reconhecendo que a existência de uma montagem é já um retrabalhar o material parece-me, ainda assim, que Lacrau é quase uma primeira experiência a pedir para ser retrabalhada a cada reacção do público.
Não para se tornar mais "fácil" ou para se adaptar ao gosto dos que o rejeitaram num primeiro momento.
Não deixa de ser, em vários momentos, um belo exercício de prospecção. Mas deixar que a prospecção seja o resultado final é admitir que não se encontrou uma orientação, uma abordagem que o público possa apoiar ou criticar, mas seguir a par do autor.
Está na própria sinopse a condenação do filme, falando do progresso composto de um "vazio emocional". O filme é, ele inteiro, um passo do progresso do cinema (em direcção a algo que poderá requerer outro nome) que não consegue mais englobar as pessoas.
Como se o realizador tivesse querido livrar-se do homem em vez de o engolfar na curva a que o seu filme se propôs voltar.


Publicado originalmente a 12 de Março de 2013

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