quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Kimyô na sâkasu, por Carlos Antunes


Título original: Kimyô na sâkasu
Realização: Shion Sono
Argumento: Shion Sono
Elenco: Masumi Miyazaki, Issei Ishida e Rie Kuwana

Este é um filme profundo que joga com duas temáticas que servem de traves mestras à exploração de uma teia fixações de Shion Soto.
São elas o grau de perda da realidade no seio da criação artística e a retribuição como hipótese de resolução do drama familiar.
Ambas acabam por criar um emaranhado onde histórias dentro de histórias e personagens dentro de personagens vão questionar a própria noção de identidade e a construção da memória.
E logo depois delas podemos olhar a miríade de vícios, fétiches e ilusões que são segredos para o ser humano mas são matéria-prima para o bom cinema.
Trata-se de um filme enigmático mas perfeitamente esclarecido. Não ludibria o espectador mas baralha todas as expectativas. Dá-nos aquilo que não imaginávamos que ele continha!
Não se rende à linearidade mas não anda perdido tentando perder o público. Vai sempre a caminho de um objectivo narrativo bem definido que prima pela surpresa.
Uma surpresa para a qual até deixou pistas mas com as quais foi sensato e não as desvendou antes do tempo.
Longe da tal linearidade, o filme não quer meramente chocar o público. Está a complexificar a estrutura para melhor retratar a dramaturgia da realidade extrema colocada sob uma lupa que logo a filtra com a sensibilidade de verdadeiro artista.
Visualmente criativo (e muito belo) quando tal serve o progresso das sugestões contidas no filme, é um filme de múltiplos momentos sem que nenhum se desprenda da forma una ou do propósito global.
Quando chega o desfecho de sangue não parece exagerado. O exagero gráfico não é gratuito, é a única resposta imediata possível ao rasto de perfídia humana deixado contra quem executa esse novo acto de violência física.
A sexualidade brutalizada ou a psicologia traumatizante purgam-se no diálogo... com a violência.
O verdadeiro terror do filme esteve todo no que nos levou até à cena final, uma aterradora maldade (por vezes inconsciente) trabalhada por Shion Soto com um humor negro que nos marca um sorriso durante a maior parte do filme.
Quando ganhamos consciência dele amedronta-nos ainda mais por reconhecermos em nós o mesmo deleite pela violência que têm as personagens à nossa frente.
Terror e fascínio mesclados numa obra que não se esgotará nunca e cujo efeito surpreendente não diminuirá com o tempo nem mesmo quem não a apreciou.
Tudo isto agora escrito é apenas arranhar a superfície da vida que o filme tem dentro de si, da imaginação florescente de um autor para quem criar um filme parece ser conter-se onde outros têm de forjar a inspiração.

 

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