Título original: O Barão
Realização: Edgar Pêra
Argumento: Luísa Costa Gomes
Elenco: Nuno Melo, Marcos Barbosa e Leonor Keil
Tendo perdido ambas as sessões d'O Barão no IndieLisboa, a passagem do filme pelo MOTELx foi a única sessão que marquei como imprescindível quando vi o programa pela primeira vez.
Com uma conversa marcada para o final do filme, a sessão encheu e foi por pouco que não voltei a perder um filme que, mal acabou, senti como indispensável no panorama do cinema nacional.
Com tanto de clássico como de moderno, o filme repesca amiúde géneros e influências de importância maior enquanto procura uma estética moderna.
O filme sabe utilizar as possibilidades do avanço cinematográfico indo, como sublinhou Edgar Pêra, buscar ideias a Scott Pilgrim vs. the World para tornar as legendas em inglês integrantes plásticas do filme, o que sublinha a origem literária da obra e a expressividade das palavras (escritas).
O moderno sublinha a redescoberta do clássico, esteticamente acima de tudo, mas tematicamente também.
No essencial o filme refaz o terror de Körkarlen e Nosferatu, eine Symphonie des Grauens através do estilo noir de recursos mínimos dos anos 1940, com isso fazendo jus à mitologia que o projecto carrega consigo de filme perdido e agora refeito.
E, também, fazendo das memórias esquecidas do cinema forma moderna de superar os métodos cada vez mais padronizados de fazer cinema dinâmico e atraente - ou assim o julgam uma maioria pouco criteriosa.
A utilização total de cenários e iluminação teatral - outra das características que o realizador sublinhou na sua obra - dão a possibilidade de o filme oscilar entre o isolamento num espaço grandioso ou a intimidade do recato do palco vazio. Uma série de luzes apagadas e um breve apontamento interno na forma de solilóquio e a envolvência com a cena cresce repentinamente.
Mas é pelo recurso à montagem sobreposta, já não uma novidade na obra do autor, que o filme sugere (talvez acidentalmente) significados mais profundos.
Levada ao extremo tal ferramenta, não só dinamiza o filme como sugere a intercepção de identidades dos seus personagens, tornando-os menos bem definidos como personagens ao serviço de um argumento contra a tirania.
A fusão das suas perspectivas e até das suas feições sugerem uma confusão profunda entre o homem que tem o poder e se sente ensandecido por isso; e um outro que olha o primeiro com admiração para encobrir o desejo de lhe tomar o lugar.
As duas figuras que se amigam e assustam - Marcos Barbosa de visita ao domínio de Nuno Melo - são por vezes uma e a mesma, vítimas da atracção do poder e violentos homens que forjam o seu domínio reduzindo força dos outros sem nunca aumentarem a sua. Pequenos tiranos contrariados e orientados obscuramente pela mulher que os deve servir.
Em conjunto com Leonor Keil são o retrato de um Portugal que foi e que perdura, talvez menos provinciano, mas igualmente censurável.
Infelizmente para Marcos Barbosa, a sua prestação é bem mais discreta (mas não inferior) do que a de Nuno Melo que com a sua criação tomou o filme para si e subiu a um hipotético pódio de figuras inesquecíveis do cinema nacional.
A caracterização do seu domínio é subtil. Vemos os homens da tuna erguerem-se da mesma divisão onde o Barão guarda os cães e sabemos que valor ele dá à vida humana.
O seu Barão impõe a ilusão de dignidade antes de revelar um fundo de humanidade. Um ser que é mais tenebroso quando em vez de gritar fala delicadamente. E até sorri, com o seu rosto cortando o negro com traços cadavéricos de ensandecido palhaço.
O terror d'O Barão é feito da composição de Nuno Melo e do sentimento de realidade filmada - aumentada por tal interpretação.
Mesmo sem que tal terror fosse insuficiente para evitar que uma ou outra pessoa dormitasse na sua cadeira, esta é uma das grandes experiências em sala para quem ama o Cinema.
Esteticamente irrepreensível e deliciosamente identificado com o nosso país - e, à conta disso, apelidado de forma inteligente pela expressão "terror castiço". Um filme bem português consciente de um cinema global.
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