sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Sangue do meu Sangue, por Tiago Ramos


Título original: Sangue do meu Sangue (2011)
Realização: João Canijo
Argumento: João Canijo

Escusamos de perder tempo desde já com palavras desnecessárias e ir directamente ao que interessa: Sangue do meu Sangue é o evento cinematográfico português do ano e um dos melhores a estrear desde há muitos anos. João Canijo sempre trabalhou como poucos neste país, mas parece que há aqui algo de muito especial e diferente que se traduz num hype raras vezes visto no cinema português. Hype esse perfeitamente justificado e superado facilmente pela obra que se nos apresenta.

João Canijo sempre foi um digno cineasta adepto do realismo social, dedicando-se sobretudo à tragédia grega no interior rural do país (Ganhar a Vida (2001), Noite Escura (2004) e Mal Nascida (2007) mas aqui o que vemos é mesmo a realidade e sobretudo, apesar da miséria que encaramos, não é uma tragédia. Dentro de uma inevitável falta de esperança, este é o filme mais positivo do autor. Não quer com isto dizer que abdique do drama social, do realismo, mas também nunca cai no melodrama novelístico (muitas vezes encaramos um ponto de vista quase clínico) e sobretudo, dentro da iminente tragédia, ela nunca chega na realidade a acontecer, porque finalizamos Sangue do meu Sangue com um senso de redenção. E sobretudo com uma mensagem positiva de amor incondicional.

Em Sangue do meu Sangue encontramos uma forma diferente de trabalhar, um método longe do sentido plano que habitualmente encontramos no cinema e televisão portugueses. Aqui vemos texturas, enquadramentos fabulosos e narrativas simultâneas, com diálogos simultâneos, a obrigar o espectador a escolher qual seguir, enquanto lá fora (ainda numa terceira acção) numa casa paralela se ouve um casal (real e não ficcionado) a discutir. Isto é a vida. É a realidade, a vida com mais que um acontecimento em simultâneo, não escolhe, não selecciona, não reparte. João Canijo também não. Porque ele sabe, sobretudo, retratar a vida e o país em que vivemos, com múltiplas referências à nossa identidade nacional, seja ela através das profissões, da comida ou da música.

O espaço familiar comum ao cinema do cineasta é aqui ainda mais rico que o habitual, especialmente porque o argumento foi construído não só através de João Canijo mas também pelos próprios actores, que criaram e desenvolveram as personagens. Um Mike Leigh português. Um excelente trabalho de direcção de actores, embora o cineasta não goste desse título. Um dos elencos mais soberbos dos últimos anos, com interpretações fabulosas, especialmente as femininas. Rita Blanco, a quem qualquer papel lhe assenta como uma luva, a interiorizar uma mãe capaz de tudo para salvar a filha (Cleia Almeida) de uma tragédia e uma tia – interpretada por Anabela Moreira - (personagem riquíssima, cabelereira, de vida desinspirada e que se sente inútil para todos) capaz de se sacrificar perante um dealer (Nuno Lopes) para salvar o seu sobrinho (Rafael Morais). História nua e crua, mas que não permite ao espectador desviar o olhar um único segundo – veja-se a estarrecedora cena final entre Anabela Moreira e Nuno Lopes. E pensar que tudo isto se passa no Portugal real, no nosso país, porta ocidental da Europa, na capital do país, na Europa. O Bairro do Padre Cruz é um microcosmos assustador, de onde sairá o futuro do nosso país (há futuro ali?), onde se vive encurralado entre paredes meias a mais desgraça e desalento. Mas nem por isso se vive uma tragédia inevitável ali, há sempre um sentido de esperança, há sempre amor e também humor, perante estes retratos únicos da vida.

E muito haveria para dizer sobre Sangue do meu Sangue mas nada seria suficiente. Daí que este é um filme para ser visto, revisto e assimilado. Uma obra-prima, o melhor filme de João Canijo, um dos grandes filmes portugueses de sempre.


Classificação:

7 comentários:

  1. Será exibido por aqui no Festival do Rio (dia 19) e eu estarei lá para conferir. 

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  2. Esta crítica mereceu destaque na rubrica «A "Polémica" do Mês» do Keyzer Soze's Place, disponível aqui: http://sozekeyser.blogspot.com/2011/10/polemica-do-mes-5.html

    Cumps cinéfilos!

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  3. filme na base de dados do Portugal Fantástico (secção longas) : http://portugalfantastico.webnode.pt/

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  4. Só tenho duas palavras Grande Filme, até gravei os 3 episódios da rtp1 para poder ver de novo, mas vi com pessoas que odiaram porque dizem muitas asneiras e criticam especialmente os diálogos simultâneos mas acho esse um ponto forte como tu também referes na critica.

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    1. Ora nem mais. Precisamente. Num filme tão realista, isso faz pleno sentido.

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