quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Sniper Americano, por Tiago Ramos


Título original: American Sniper (2014)
Realização: Clint Eastwood

Em Inglourious Basterds (2009), de Quentin Tarantino, a dada altura e durante um momento de propaganda nazi com o próprio Hitler a assistir na plateia, mostra-se a antestreia de Stolz der Nation (filme dentro do filme, realizado por Eli Roth), que conta a história de um herói nazi, um sniper alemão a matar soldados dos Aliados de uma torre de um relógio. Uma paródia aos filmes propaganda nazi de Leni Riefenstahl e que nos choca precisamente pela intenção e pela forma cobarde com que o protagonista elimina os seus inimigos, sem uma posição de igual para igual. Esta associação entre Stolz der Nation e American Sniper, por mais injusta que seja, é facilmente compreensível e deixa-nos perante uma delicada posição na apreciação do filme de Clint Eastwood. É por exemplo a mesma posição em relação a The Birth of a Nation (1915), de D.W. Griffith, um filme altamente controverso e racista, mas que só não ganhou o estatuto de obra-prima precisamente por isso.

Sniper Americano coloca-nos perante a mesma dificuldade em saber manter a distância objectiva entre a as intenções de uma personagem e a intenções do filme, entre saber diferenciar a estrutura fílmica, do argumento e do seu respectivo simbolismo. É verdade que o filme peca precisamente pela forma unidimensional com que aborda o tema da guerra no Iraque, chegando até ao ponto de generalizar o povo iraquiano (há vários momentos em que as personagens os identificam como «selvagens»). Uma visão por vezes até ideologicamente perigosa: veja-se o seu início quando se passa imediatamente dos atentados de 11 de Setembro de 2001 para a guerra no Iraque, estabelecendo uma relação causal imediata e errónea, que permite vislumbrar uma agenda política por trás, não fosse o espectador não conhecer as ideologias políticas de Eastwood. Mas ainda assim há que compreender - e correndo o risco de estimular a controvérsia - que por mais reprovável que seja o ponto de vista e apesar da necessidade (?) moral  e social de ser inclusivo, o filme estabelece precisamente isso: um ponto de vista. Um ponto de vista do seu protagonista e que aqui podemos tentar distinguir do trabalho artístico do cineasta.

Isto porque facilmente se reconhece que este será o melhor trabalho de Clint Eastwood desde Gran Torino (2008) e que também não esconde algum humanismo das personagens, incluindo uma consciência pesada e até uma mensagem, em determinadas alturas, anti-guerra. Além do absoluto controlo da câmara, o cineasta consegue criar ritmo numa história que, de tão auto-centrada que é, poderia tornar-se aborrecida. Bradley Cooper faz um trabalho espantoso a vários níveis, com uma desconstrução física e psicológica do actor que o eleva para um novo patamar depois do reconhecimento mediático que tem tido nos últimos anos. Mas também há que reconhecer a belíssima e delicada composição de Sienna Miller, que serve muitas vezes de contraponto humano, à aparente mensagem racista e excessivamente patriótica que o filme carrega. Não esquecer ainda o fabuloso trabalho técnico, desde a montagem às técnicas de captação e mistura sonora.

Ainda que várias vezes reprovável e tendencioso, assim como detentor de uma grande falta de tacto, Sniper Americano não deixa contudo ignorar o talentoso trabalho do seu realizador e da sua equipa. Todos sabem o que fazem: criam tensão quando é precisa, mas também mantêm o interesse do público, tanto o que acredita na mensagem por ele divulgada, como o que não. Ainda assim, reconhece a violência - há cenas extremamente gráficas - e deixa alguma margem para o reconhecimento de um tema delicado e nem sempre assim tão unilateral - veja-se a cena em que Chris Kyle espera um desenvolvimento na acção que o iniba de cumprir a sua função de puxar o gatilho ou as cenas em que não consegue voltar à rotina quotidiana com a sua família, nos Estados Unidos. Ainda que míope, o filme não é certamente cego.


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