sábado, 25 de janeiro de 2014

Entrevista a Filipe Coutinho - «Temos de conhecer muito bem o mundo em que as nossas personagens vivem»


Inicialmente conhecido na comunidade como um cinéfilo e blogger de cinema em Portugal, Filipe Coutinho estendeu a sua formação académica (em Gestão de Empresas) para um Mestrado em Cinema na New York Film Academy. Um passo natural para quem lhe conhecia a sua paixão por Cinema e que começa a dar frutos. Depois de uma primeira experiência no registo noir com a curta-metragem Black Mask, «escrito e realizado como se de uma película dos anos 40 se tratasse», o agora realizador e argumentista partiu para um novo trabalho, bem diferente deste seu primeiro registo. «Inicialmente apelidada de Autumn Leaves, esta história começou a ser concebida um ano antes da sua rodagem e era o meu objectivo filmar a curta em Nova Iorque num outro tipo de milieu. Quando me mudei para a Costa Oeste ainda procurei manter a base e o feeling que potenciaram a obra mas o tempo, esse agente de mudança, transfigurou organicamente o sentimento que inconscientemente me levava a explorar um tema pelo qual já não tinha o mesmo fascínio. E de repente, o que um dia ganhou força como Autumn Leaves deixou de fazer sentido. Era tempo de repensar a minha história e estabelecer alicerces mas viria a ser o tempo – novamente – a determinar o meu rumo.» Autum Leaves passou então a Homecoming, um filme que explora as reacções familiares face uma eminente tragédia. Coutinho justifica a sua intenção: «Tudo começa e acaba numa noção de família. É esse o nosso alfa e o nosso omega. Quis explorar essa elipse, o fim que dá origem a um novo começo, o ouroboros que nos leva a dar importância a eventos marcantes mas inevitavelmente inconsequentes. Além disso, constituiu um novo desafio para mim, uma dinâmica que ainda não havia explorado e que me permitia trabalhar de forma mais extensa com os atores de modo a que esta família o fosse também no ecrã.»

Em Homecoming sentimos a eminência da morte. O regresso a casa do pai e marido Peter Sanders não é o alívio que se esperaria de quem abandona o hospital para se juntar ao conforto da família. À medida que a sua esposa adúltera tenta conectar-se a ele, vemos o lado mais doce da história, com a filha de seis anos de idade a tentar curá-lo com amor e canções de Bob Dylan. Porquê este e não outros? «Existe uma construção rítmica nas letras de Bob Dylan que lhe permitem seguir uma carreira nesse tipo de indústria, mas a escrita é de poeta e é desse modo que as suas canções e, em particular, a You’re gonna make me lonesome when you go, são tratados. Escolhi Bob Dylan acima de outros liricistas pela complexidade da sua escrita que é, não raras vezes, ofuscada pela dinâmica da sua musicalidade. E isso somos nós, não? Damos uma cara, vivemos de uma certa forma e o mundo à nossa volta não olha uma segunda vez, não tenta descobrir a nossa musicalidade, a nossa a nossa vasta e maravilhosa profundidade. Quando estava a explorar a relação entre o Peter e a Lindsay, o uso da sua poesia tornou-se rapidamente uma realidade inabalável.» Mas apesar do resultado final aparentar o oposto, o processo criativo em redor deste argumento nem sempre foi o mais pacífico, a coincidir com um momento de «mais introspecção e menos produtividade, fazendo com que a escrita se tenha revelado morosa». Como chegou a inspiração? «Surgiu de forma catártica através de um poema do Walt Whitman, um belíssimo texto que me fez perceber a dimensão e a profundidade que viria a definir a importância que dou a personagens como seres humanos (e toda a complexidade que os caracteriza), definindo, deste modo, o macguffin que até aí havia procurado em vão. Embora parte da fita seja inspirada em acontecimentos (infelizmente) verídicos, foi o dilema moral que estas personagens enfrentem a força motriz para a sua concretização».



Filipe Coutinho explicou-nos ainda como foi dar vida ao argumento que escreveu. «A velha máxima “somos tão bons quanto a equipa que escolhemos” é talvez a única verdade no cinema. Tive a sorte de reunir profissionais fantásticos que me ajudaram a construir e a moldar a visão que existia apenas na minha cabeça, um conjunto de artistas que percebeu o que idealizava e que me incentivou a correr riscos, que me desafiou a sair da zona de conforto em prol de um objectivo comum. E devo dizer que é verdadeiramente recompensador dar vida a uma ideia, vê-la amadurecer e transformar-se,  magicamente diria, num veículo de ideias, de criatividade e de emoções. Foi um trabalho árduo e devo muito ao meu Diretor de Fotografia e à minha Production Designer que durante meses pacientemente ouviram as minhas divagações e me puxaram sempre para a realidade que por vezes me escapava. Dito isto, acho que estes (a par do Produtor) são os braços direito de um realizador e sem uma comunicação quase telepática um filme não pode subsistir.» Fazemos notar que nesta sua mais recente curta-metragem se nota o extremo cuidado dado ao design de produção e à direcção de fotografia que, em muito, complementam a narrativa. Concorda: «Foi dada, desde o começo da pré-produção, grande ênfase ao esquema cromático, visual e sonoro que queria transmitir e que se enquadrava no tipo de história que queria contar. Acredito que temos que conhecer muito bem o mundo em que as nossas personagens vivem, saber interpretar os sons que o constituem, as cores que pintam a sua existência e o tipo de planos que o definem. Sem isso, estamos a negligenciar o que na nossa cabeça nos é tão próximo. Sem isso, estamos a impedir que outros entrem num mundo que, a certa altura, é só nosso. Nesse sentido, acredito que todos os elementos que constituem um filme, independentemente da sua duração, devem ser cuidados e devemos à nossa equipa um eterno obrigado pela sua influência no produto final».

A partir daqui, Filipe Coutinho reconhece este trabalho como uma mudança na definição do tipo de cinema que quer fazer de futuro. Assumidamente orgulhoso diz que Homecoming «será, provavelmente, o filme mais importante da minha carreira. Não será, espero, o melhor, mas foi aquele que me ajudou a definir a visão que me pertence e que pretendo explorar. Hoje, essa visão é moldada todos os dias naquele que é um processo de evolução infinito, mas o seu contínuo crescimento nunca seria possível sem as bases estabelecidas durante os meses que passei a racionalizar o Homecoming. O que se seguiu foi um processo de aprendizagem inestimável, sofrível e recompensador na mesma medida, pensado e desenvolvido com extrema dedicação e no prazer da companhia de colaboradores e artistas sem os quais o filme nunca existiria». Reconhece o cinema como prazer, também pela possibilidade de trazer ao cinema personagens com histórias reais, intensas e honestas. «A percepção sobre os mundos que quero explorar altera-se uma e outra vez mas as crenças sobre história, sobre personagens, essas mantêm-se inabalavelmente sólidas. Fascina-me a nossa tridimensionalidade, a capacidade de sermos deliciosamente inconsistentes, controversos e infinitamente vastos. Mais do que explorar uma história fascina-me explorar o homem que a define. As minhas narrativas começam sempre com um traço de personalidade, uma característica que torna uma personagem única, algo que me faz querer dissecá-la. A história surge depois. Afinal, somos nós, a viver e a conviver, que damos origem a ‘histórias’ e vejo algo de maravilhosamente orgânico na criação de uma narrativa a partir desse conceito.»


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